contador de visitas gratis
Mente(confusa)Brasília
Acordei meio cansado, pensando nas doze páginas que eu deveria escrever nesse final de semana para me colocar entre um dos possíveis candidatos a ter um artigo publicado. Hoje é sábado, mas descansar está fora de cogitação. Entre a escolha de ir para as aulas do programa preparatório para o exame TOEFL ou ficar em casa para trabalhar no artigo, decidi seguir as obrigações institucionais. Ainda fiquei um pouco estressado por ter acordado e a primeira voz que ouvi foi a da vizinha, não que eu tenha algum problema com ela, apesar de toda a gritaria nos finais de semana e da forma que ela trata seu filho, como se ele fosse algum animal de uma deusa suprema, dissimulada. N’outro dia ela xingou desenfreadamente, porque estava cantando tão alto que dava para ouvir do meu quarto, ao pedirmos silêncio ela reclamou, alegando não poder relaxar nem no final de semana. Ora, lembro-me bem das primeiras semanas que nos mudamos para a casa da frente, e era de praxe eu e minha irmã fazermos barulhos todos os dias pela madrugada, mas tivemos que nos adaptar a essa nova rotina, por conta do próximo e, aqui, essa é a questão: se enxergar no próximo para ser capaz de tomar consciência de si. Não que ela não tenha direito de gritar e cantar desafinadamente músicas profundamente supérfluas para mim, mas assim como suas próprias obrigações, eu também tenho as minhas, afinal, acordo cinco horas da manhã todos os dias para conseguir chegar a tempo na minha aula de desenho às oito, e depois disso minha próxima aula só é as sete da noite, por conta dos horários flexíveis que a universidade nos proporciona. Não que isso seja ruim, mas saio de madrugada e chego de madrugada em alguns dias e o sábado realmente é interessante para eu dormir até mais tarde... Pois bem, decidi ir ao inglês e saí de casa meio dia para estar apto a chegar até às duas da tarde, no horário exato da aula; esperei por alguns minutos, o primeiro ônibus passa: lotado. Poucos minutos depois passa o segundo, esse eu peguei, lamentando não ser o trajeto necessário para que eu tenha acesso à Universidade, infelizmente é sábado e é praticamente a única linha que existe, ou seja: gastarei dez reais de passagem e pegarei dois ônibus para ir e dois ônibus para voltar, mas tudo bem! Tenho comigo a introdução do Wolfflin e os álbuns da Karina Buhr, Tulipa Ruiz, Céu, Filipe Catto e Mallu, bem como músicas de Johnny Hooker, Florence Welch, Lurdez da Luz, Angela Maria, Solange e Frank Ocean. Pelo menos consegui me sentar dessa vez, porque minha parada de ônibus é praticamente uma das últimas do bairro, onde o ônibus costuma já passar lotado. Desta vez não, eu estava bem! Com fones de ouvidos, selecionei algo para ouvir, infelizmente algum cara estava com aqueles pequenos sons que vendem na feira onde basta conectar um pen-drive para termos acesso à sonoridade, e digo isto de forma infeliz pela falta de senso que esses caras costumam ter ao impregnar o ônibus inteiro com músicas que, convenhamos, não cabem ao gosto universal, é só pensar na hermenêutica como ramo filosófico e o quanto ela influencia na leitura de uma obra de arte; este termo pode facilmente ser subvertido por mim se eu trazê-lo para outros ambientes externos à obra de arte. Ou será que sou ignorante em relação ao que estou dizendo? Pode ser. O fato é que me levantei e procurei sentar distante dele, o que fez eu me sentir bem, demonstrando que estou menos preso a certos impulsos da alma que muitas vezes eu ignorei pensando no que fulano acharia disso; se nem meus olhos são capazes de me ver, me enxergando somente através de um “eu ideal” – espelhado –, por que algum puto seria? Fico até pensando nas energias e em como essas pequenas atitudes provocam uma mudança externa e interna. O fato é que agora estava em outro lugar, mais confortável com minha própria música, interna somente aos meus ouvidos, o problema agora era o olfato, já que tinha um bêbado sentado atrás de mim com os sovacos tão fedorentos que pensar no Wollflin seria impossível. O que seria melhor? Sentar na frente e aguentar um fedor tremendo, até me acostumar com o mesmo, ou sentar atrás e me incomodar a viagem inteira com músicas sobre como é triste ser corno, como as mulheres são piranhas submissas e como meu cérebro é estruturado em bases profundamente questionáveis. A verdade é que não faz diferença, sendo assim, apenas please and blessed be e vamos mergulhar no Wolfflin, apesar que podia ser o Winckelmann, já que não tenho muita opção... Agora, minutos depois, estou profundamente acostumado com o mau cheiro, o calor escaldante que desgasta minha pele, a sonoridade vinda do barulho intrínseco ao ônibus e a viagem de práxis entre meu bairro e o centro de Brasília. Já estou no Park Way. Engarrafamento. Ora, enfrento engarrafamentos quase todos os dias, principalmente por conta das novas obras que, ironicamente, não são tão novas por durarem quase dois anos, nessa rede de costumes sádicos, percebo que me encontro em algo totalmente novo, resignovosignificado. O tráfico corria de forma intensa, ou melhor: estava parado de forma intensa. No começo estava tudo bem, as poucas pessoas que estavam no ônibus não demonstraram muita inconformidade a respeito do ocorrido, mas a medida que o tempo passava, as relações humanas que começaram a se desenvolver naquele ônibus variaram consideravelmente em escalas que foram desde indignação à risadas. Pouco a pouco o tempo passava: trinta minutos, quarenta e cinco, uma hora, uma hora e meia, duas horas... A este ponto três ou quatro pessoas já tinham desistido da viagem, alguns desceram na BR e foram caminhando para o local de origem, tão desiludidos ideologicamente por fatores externos a eles como a própria distancia, porém bravos. Minha alma a este ponto estava dividida, já tinha consciência que perderia a aula e não escreveria o artigo naquele dia e nesse impasse, lá estava eu, sentado em um dilema sobre continuar naquele ônibus, paranoico e passivo, ou revolucionar meu espírito e cair em uma aventura, sozinho fisicamente no meio de uma rodovia e sozinho internamente por conta da playlist que a este ponto já tinha acabado. Tecnicamente não fiz nem um, nem outro. Estupidez. Desci do ônibus e fumei um cigarro, tinha tempo suficiente para fumar a carteira inteira. Alguns colegas de engarrafamento, passivos-passivas, me acompanharam. Eu estava indignado e perplexo pela mistura de sentimentos que tomavam conta de mim e dos outros: alguns riam, outros estavam estressados, outros calados; tempo depois os sentimentos se invertiam e nessa oscilação fomos encontrando um sentimento médio, que era impulsionado contra a nossa vontade, o que me fez perguntar: O que são as relações sociais? Como elas são construídas? Há uma forte influência da cidade grande e da práxis social em sua estruturação? Nunca obtive resposta, apesar da minha alma vibrar naquela tarde escaldante, apesar de agradecermos ao ver outros ônibus lotados e pensarmos que poderíamos estar em uma situação pior, apesar das desavenças e das diferenças, das atitudes que são assumidas em posições de desespero a mercê de um sistema institucionalizado. O cara fedido já não fedia tanto, o cara do rádio desligou seu som e eu, indiferente de mim mesmo, tolerava melhor as relações que aconteciam independente de mim. Depois de muita análise pessoal – talvez pretensiosa – de tudo que estava acontecendo, a pista foi finalmente liberada. As comemorações, profundamente melancólicas e cansadas, se iniciaram e, pouco a pouco, o fluxo voltava ao normal, cada um sentado novamente em um banco, caminhando para o casulo interno, frio e individualista. Em poucos minutos as pessoas já estavam dispersas, caminhando em origem ao seu destino e, agora, realmente não me lembro de nenhum dos rostos daquela tarde, apenas do que sobrou da minha memória fragmentada. Resquícios. Desembarquei na rodoviária, os dez reais que serviriam para pagar minha passagem foi investido em água e um doce. Naquele dia joguei na mega-sena, fui à uma exposição no Museu Nacional para excluir a sensação de que perdi o dia e retornei para casa, no mesmo ônibus, na mesma linha, passando pela mesma rodovia, porém, de forma inversa: desta vez o ônibus estava lotado, o caminho de volta é oposto do caminho de ida e, aquela pista, cheia e lenta de horas atrás, desaparecera assim como aquelas pessoas e aquela breve relação desenvolvida entre quinze diferentes pessoas. Hoje sinto saudades! Nostalgia.
Página Inicial